Um bonde chamado desejo foi composto por uma estrutura dialogada como as que são feitas especificamente para o Teatro, mas pela extensão, ele também pode ser considerado um Romance. Assim ele apresenta toda uma nuance diferenciada dentro da proposta do autor, que centra nos diálogos dos personagens, as passagens mais intrigantes para prender a atenção do leitor. Não só isso. Tennesse Williams conseguiu um efeito de recepção muito eficaz no leitor ao prendê-lo nas “entrelinhas” do texto, deixando no ar uma situação no entredito que cada leitor entenderá como quiser.
As cenas do livro são muito bem descritas e envolvem muitas vezes música para dar o tom da cena, o que chega a ser encantador. Nova Orleans dos anos de 1950-1960 foi o berço do Jazz e do Blues, gêneros musicais Cult, mas que na época eram veiculados em zonas de Storyville, guetos de negros e gente da “pior espécie” do ponto de vista dos caucasianos. Um bonde chamado desejo poderia ser a história de qualquer pessoa do século XXI, na qual há casais problemáticos, jogos de aparências, amor desmedido e selvagem, onde uma mulher fantasia em ser salva da ruína em que se encontra, pronta para encontrar um homem rico que sustente tudo que ela foi um dia: rica, bonita e jovem.
É o retrato de uma sociedade decadente, personificada por Blanche DuBois, uma bela mulher que vai para a casa da irmã por não ter mais para onde ir. À beira da loucura, traumatizada e sofrida, ela entra em confronto com o mundo rude e viril do cunhado, Stanley Kowalski. Essa tensão, estabelecida entre o refinamento e a brutalidade, mostra as ruínas num mundo conflitado, sem lugar para o amor e para a sensibilidade.
As novas mudanças sociais ocorridas no pós-guerra que encontramos nessa peça foram escritas e transpostas para o cinema, e os primeiros textos do autor (1940-50), foram aclamados pela crítica e audiência, em parte por propiciarem ao público um espetáculo de violência, moralidade, tragédia e romance em um cenário tipicamente urbano, encarnados por personagens cuja marca maior configurava-se no esforço em se apresentarem como indivíduos ou figuras representativas de aspectos peculiares da vida e da tradição norte-americana.
Em certo sentido, Um bonde chamado Desejo pode ser descrito como a primeira mais bem sucedida incursão de Williams nos meandros da sexualidade humana (evidente na tensão dos desejos animalescos de Blanche e Stanley), um ácido retrato da desintegração pessoal. Williams consegue capturar a imaginação do público, Chamando também a atenção o fato de que enredos reforçaram perfis estereotipados e maniqueístas de mulheres em duas categorias exclusivas, seguindo uma estruturação de narrativa pautada em dois esquemas em funcionamento de uma ordem simbólica caracterizadora da figura feminina como objeto. Seja da mulher como a bela e obediente dona de casa e progenitora ou como as das prostitutas dos salões de baile. Sem dúvida, esses dois tipos clássicos encontram-se retratados em Um bonde chamado desejo sendo a doce e indefesa Stella o primeiro tipo e a desvairada Blanche o segundo.
Enquanto Blanche pertence ao universo das grandes e decadentes plantações sulistas e atua como um veículo no qual o passado norte-americano de século XIX é revivido, resistindo assim ao seu fatídico e inevitável desaparecimento, Stanley, por sua vez, encapsula a imagem da nova América, do imigrante e do homem da cidade. No espaço da narrativa, é ele aquele que, dentro do seu grupo, encontra-se dotado das qualidades ou habilidades necessárias para vencer no mundo pós-industrializado, no comércio, em um universo reconfigurado pela máquina, pelos carros e locomotivas.
Nesse contexto, ele assevera sua masculinidade e sua falta de refinamento; e, onde não pode dominar sexualmente, ele recorre à violência. Certamente, sua figura representa muito mais a face aceita do típico macho da selva urbana retratado pelas obras de Hollywood nos filmes de gangster nas décadas de 1930.
Frequentemente nos deparamos com personagens femininos agarrando-se tenazmente aos seus sonhos de realização perdidos — Blanche e Scarlet O’Hara são típicos exemplos desta perda. Seus sonhos nunca são concretizados no plano da realidade, exceto pelas fantasias dos romances lidos ou das operetas assistidas, posto que a propulsão do materialismo norte americano destruiu todas as expectativas e sonhos, deixando o homem abandonado em um mundo sem sensibilidade.
Um bonde chamado desejo recria uma atmosfera de conflitos entre os valores tradicionais e uma nova e dinâmica ordem social: um mundo que fora outrora assentado por elementos como a elegância, a beleza e o floreio do universo burguês do século XIX e que gradualmente desaparece diante da truculenta agressividade materialista da sociedade industrial moderna. Na estrutura narrativa da peça, esse confronto entre duas conjunturas histórico-sociais distintas concentra-se em uma arena de batalha travada pelos personagens Blanche e Stanley. O verniz que reveste Blanche é evidentemente o da decadência do passado aristocrata; seu único meio de sobrevivência em mundo moderno e dinâmico é agarrando-se a um outro ser e sugando-lhe sua energia física, emocional, ou mesmo material, como um parasito decorativo. Stanley, por sua vez, é constituído de uma energia viril e agressiva, características outrora desprezadas e sublimadas pelo cavalheirismo cortês típico do universo de Belle Reve. Evidentemente, a dramatização desse confronto ocorre em diversas esferas simbólicas, mas é, sobre tudo, em termos sexuais que o passado aristocrata associa-se à imagem da fragilidade feminina confrontando-se com a modernidade representada pela masculinidade ao mesmo tempo carismática e brutal do turbulento confronto entre dois mundos díspares, representado pelas duas personagens, vaticina a vitória da modernidade sobre a tradição aristocrática na forma simbólica em que Blanche sucumbe à força de Stanley no final da peça.
Ao longo da leitura, testemunhamos uma sucessão de cenas marcadas por uma acirrada disputa entre os protagonistas pelo controle do espaço. A disparidade e o consequente embate entre ambos são sinalizados já na primeira cena na qual Blanche entra elegantemente vestida com “uma valise branca, corpo frágil, exibindo um colar e brincos de pérolas, calcando luvas brancas e um chapéu que, levemente, esconde seu rosto” (WILLIAMS, 1984, p. 15). Seja por meio de sua vestimenta e adereços ou em seu delicado modo de ser portar, Blanche demonstra um imenso descompasso com o novo lugar e situação, não sabendo como agir. Então ela se dá conta de que não se encontra mais em seu território. É somente com a chegada de sua irmã Stella, visivelmente mais adaptada àquele meio, que Blanche sente-se um pouco mais confortável, pois encontra na irmã um elo que conecta esses dois mundos diametralmente opostos.
Desse modo, o contra-ataque de Blanche à hostilidade do ambiente realista que a tudo devora, tornando a adaptação ao meio a única e exclusiva via de sobrevivência é estabelecido logo na primeira cena em que reafirma seu poder por meio de símbolos aristocráticos como a força do nome e da tradição familiar sobre sua irmã Stella, na tentativa de restabelecer uma ordem social aristocrática e romântica, recobrando assim um status há tempos perdido. Várias são as passagens ilustrativas acerca desse embate: Blanche criticando a aparência de Stella; sua desaprovação ao novo estilo de vida da irmã em Nova Orleans junto com o marido Stanley, visivelmente um homem de uma classe social inferior à delas, segundo ela mesma expressa.
Blanche despreza Stanley por considerá-lo um homem “ordinário”, diferente do tipo a qual ela e sua irmã cresceram sendo cortejadas. A rejeição e desprezo da protagonista, além e seu esforço para impor-se naquele ambiente, podem ser interpretados como um evidente enfrentamento dos valores tradicionais diante da nova América que se sobrepõe a um passado que resiste ao desaparecimento.
Por fim, a simbologia do irreconciliável confronto entre passado e presente, tradição e modernidade das figuras de Stanley e Blanche encontra na figura de Stella uma via de reconciliação entre ambos. É através dela que a tradição do passado se molda a uma nova configuração presente a fim de garantir a sobrevivência. Mais precisamente, Williams representa como sendo o filho que ela e Stanley geram, um ponto nodal para produzir uma continuidade na ruptura, mediante a tensão antagônica dos opostos que permeia toda a história.
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