terça-feira, 5 de maio de 2015



Aniversário


Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.

No TEMPO em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas
lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas o resto na sombra debaixo do alçado —,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15/10/1929


Os versos acima, escritos com o heterônimo de Álvaro de Campos, foram extraídos do livro "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pg. 379.

Gosto da metáfora da existência, criada por Fernando Pessoa no poema Aniversário. Ele se define como sobrevivente a si próprio, como um fósforo frio... Por não ter atingido ainda tal lucidez advinda de um acúmulo peculiar de primaveras, diria que ainda sou um fósforo quase-frio... Eis aí o problema e a solução.
Há em minh’alma calor na medida em que resisto a ser riscada. Ainda encanta-me a possibilidade de ser fósforo e me oxigena de poder vir a ser riscada e então cumprir minha função existencial pragmaticamente pensada ou NÃO, ou simplesmente continuar a ser um palito de madeira a que colocaram uma peruca fosfórica, sem precisar encarnar sua utilidade. E que beleza reside na pré-coisa! Enxergá-la é sem dúvida o maior bem que me transmitiram os livros: aprender a manter o olhar minimamente ingênuo, minimamente infante, exercer a arte do cuiabano Manoel de Barros de ser criança.
Do contrário, tornar-me-ia fósforo-frio, umidade no corredor de fim de casa, pois assumir meu mundo seria renegar ser eu mesma uma pessoa em eterna mudança como o rio de Heráclito e por fim seguindo a incrível frase de Nietzsche, segundo a qual "Nós, homens do conhecimento, não nos conhecemos; de nós mesmo somos desconhecidos."... Não!
Por isso vou ali, conversar com a pessoa do Pessoa, que figura! De um pastor grego pré-socrático a um herege praticante do paganismo, de um poeta moderno a um poeta que é “o eu menos o raciocínio e a afetividade”. Voltei encharcada, é que ao invés de uma prosa, acabei por me banhar de lucidez da qual não há sais de banho no mundo que me recuperem.
Definitivamente, sou minhas leituras. Que sejam de imagens, de sons, de gestos, de silêncio, de movimentos, de representações. O importante é tentar compreender a capacidade humana de produzir o espetáculo da vida.
todas essas linhas encontrar-me-á aqui, com esse encantamento de mundo, com essa vontade de continuar a caminhada no mundo dos livros, das culturas e das linguagens. Minha existência pede que eu respire o oxigênio das paisagens homéricas, coma dos banquetes de Petrônio, ouça sobre os mitos de Ovídio e Hesíodo, assista às peças de Ésquilo, Sófocles, Eurípides e Aristófanes, enfim, retorne ao mundo dos estudos clássicos que tanto me encanta. Entre o que se inicia e o que se finaliza, chegamos, como bem lembra Heidegger: “Tarde para os deuses, cedo para os homens”. Não quero jamais obliterar minhas raízes.
Sou essas leituras, sou minhas experiências, sou minhas paixões e meus amores. Talvez seja iniciante nesse assunto, mas sim já vivi sentimentos intensos, aquela vontade de estar perto se longe, e mais perto se perto, como tentei me dedicar na deliciosa aventura de se doar ao outro. Nesse sentido volto a Pessoa, como ele, eu, que tantas vezes tenho sido ridícula, absurda, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Então sou só eu que é vil e errônea nesta terra?
Por isso, como todos, não sou nada, nunca serei nada, não posso querer ser nada, mas, à parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. E, segundo Drummond, Não há tempo consumido nem tempo a economizar. O tempo é todo vestido de amor e tempo de amar. Que assim seja.
Termino, dessarte, com a sensação de que Confieso que he vivido e com o desejo de que que a arte nos aponte uma resposta, mesmo que ela não saiba, e que ninguém a tente complicar, porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer, porque metade de mim é plateia, e a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada, porque metade de mim é amor e a outra metade também. Quero a cada momento viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar, a beleza de ser um eterno aprendiz!

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