quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015
AFIRMAR A VIDA
Hoje é um dia muito importante na vida de vocês e generosamente resolveram dividir esse dia comigo. Portanto minhas palavras são de agradecimento pela alegria e felicidade que me proporcionaram ao ser escolhido, por vocês, para ser um dos homenageados desse dia tão significativo. Embora considere que o professor ensina não apenas com suas palavras e idéias, mas também com suas atitudes, com seu corpo, com seu gesto (primeira mensagem que deixaria para vocês que serão professores), hoje disporei das palavras para deixar para vocês algumas orientações, uma espécie de filosofia de vida, aprendida em mais de trinta anos de exercício da profissão de Professor e de Historiador. Recebam essas idéias como o presente que posso lhes oferecer nessa ocasião, façam delas motivo de reflexão e de ação na nova vida que se inicia para vocês.
Valorizem a vida, afirmem a vida a cada dia. Não se deixem levar pelo desejo de morte. Numa sociedade onde as celebrações da morte e o morticínio estão por todo lado, desde a religião até a política, digam sim á vida, valorizem a dádiva de estar vivo, a cada momento. Não se deixem fascinar pelos espetáculos em torno da morte, não se deixem seduzir pelo fascínio do mórbido, que nos assalta todos os dias nos programas de rádio, de TV, nos jornais, que enchem as igrejas e templos, que se esparramam pelas páginas da história. Não cultivem a morbidez, ela leva a doença do corpo e do espírito. Não cultuem ídolos, heróis, deuses, personagens mortos, cultuem o vivo, a vida, a saúde. A historiografia não pode ser um discurso de culto aos mortos, mas um discurso de afirmação do que vive, do que continua vivo. Celebrem a pulsão da vida e não a pulsão de morte. Há muitas maneiras de suicidar-se, não faça de seu dia a dia um lento e interminável suicídio.
Amem e celebrem a existência do Outro, ele é o seu limite, mas também a tua possibilidade. Mas não hipoteques tua vida a ninguém, não abras mão da tua liberdade e de tua individualidade por causa de ninguém, Ninguém merece a a tua anulação, a tua subserviência, a tua nadificação em vida. E se alguém te cobra isso, ele merece menos ainda. Esteja ao lado dos outros, como amigos, como companheiros, como ajudantes em uma difícil jornada como é a vida.
O outro é fundamental para que saibas de tua própria existência, para que te enxergues, mas também pode te levar ao esquecimento de ti mesmo. Adotar a justa distância em relação ao Outro, nunca deixar de estar junto, mas estando sempre separado essa é a arte. Cria para ti espaços de segurança e de afastamento, até para que possas olhar o Outro em perspectiva. Toda promiscuidade e toda a mistura pode resultar em sofrimento. É fundamental amar o Outro, amando acima de tudo a ti mesmo. O aluno, o colega é teu Outro, sem o qual não existirias como professor/a.
Celebre, se alegre, respeite, ame seus alunos, mas ensine a eles a arte da boa distância, da respeitosa convivência, da polida e doce amizade. Instituir e respeitar lugares e espaços éticos é fundamental para as relações. Não necessariamente lugares e espaços hierarquicamente organizados, mas distribuídos de modo a conjurar a a confusão e a balbúrdia. A vida social é feita da instituição de limites e fronteiras. Que haja um limite claro entre a tua vida pública e tua vida privada, íntima, por uma questão de respeito aos outros e a ti mesmo. Devemos saber até onde podemos acompanhar alguém e quando devemos deixá-lo á sós ou pelo caminho.
Não se apeguem ao passado, não vivam de passado. Valorizem e afirmem o único tempo que temos: o presente. No discurso historiográfico, o passado é uma construção feita no presente, para o presente, a serviço do presente. Não vivam de nostalgia e de saudades do que se foi. A melancolia saudosista enfraquece o corpo e o espírito. A história não é escrita ou ensinada para mimar o passado, mas para reelaborá-lo, fazer o luto, superá-lo, esquecê-lo. O passado deve ser uma arma do e no presente, repensado, ressignificado, reescrito. Nem museu vive de passado propriamente dito, mas sua de sua reinscrição e reelaboração.Quem vive querendo retornos ao passado se torna um conservador, uma pessoa reativa, reacionária. O historiador não existe para salvar o passado, mas para fazê-lo passar, para retirar seu peso do presente, dos ombros do presente, dos homens do presente. Questão de higiene!
Também não vivam esperando por um futuro, não vivam da espera e da esperança. O futuro se constrói aqui e agora, no presente. O futuro é uma virtualidade do tempo de agora. Se não o fizeres o que tens ou queres agora, o futuro não te prometerá nada, necessariamente, de diferente. Não deixe de viver hoje por causa de uma promessa messiânica ou utópico de futuro. Não abra mão da imanência da vida em nome de uma transcendência duvidosa. Programar futuros é bom, desde que com os pés bem fincados na realidade do presente. Encarar o presente em sua realidade, tal como ele é, sem fugas para trás em busca do passado, ou para frente no sonho de um futuro, é tarefa indispensável, embora muitas vezes difícil.
Ame seu corpo, sua carne, Abandonem séculos de ódio ao corpo professado por filosofias e religiões. O corpo é sua casa, é sua morada, é seu espaço. Ele deve ser cuidado, alimentado, valorizado. Não desvalorizem sua condição carnal em nome de uma alma desencarnada e descarnada. O que chamamos de alma, nosso espírito ou subjetividade é inseparável do corpo, é uma parte dele. O sábio é aquele que trabalha para dar ao seu corpo mais prazer e menos dores. Numa sociedade mórbida onde se valoriza a dor, onde se afirma o absurdo salvífico e purificador da dor, valorizem o prazer, o gozo e o bem estar. Tenha sabedoria para evitar tudo o que pode trazer dor física e subjetiva. Afastar-se do que ou de quem te produz dor, estar próximo do que ou de quem te apraz, eis o desafio.
Lembrem-se do mestre Epicuro, o prazer é o supremo bem. O prazer não é imoral ou amoral, imoral é a dor, é o sofrimento, é a miséria física e mental, é aquele que sente prazer em sentir infringir a dor. Use os prazeres de modo racional e temperante, a justa medida cabe em todas as coisas. Por que a historiografia tem que ser um desfile de dores? Por que não se pode fazer ou ensinar a história dos prazeres, dos gozos, dos frêmitos e frenesis? Que infelicidade masoquista é essa que leva os historiadores a sentir prazer em narrar e ensinar as desgraças do mundo? Se elas existem e delas temos conhecimento é para tentarmos não repeti-las, embora saibamos que a condição trágica do homem não nos deixa muitas ilusões nesse sentido.
Amem a vida, valorizem as coisas terrenas, materiais, aquilo tudo que está á nossa volta. Deixem de viver no mundo platônico das idéias e dos fantasmas. Até mesmo nossos fantasmas e fantasias como mostrou Freud, têm como nascedouro as coisas materiais e concretas desse mundo. Até nossos sonhos são bricolagens de estilhaços de nossa vida, de nossas experiências. Nossas imagens e devaneios têm na experiência o seu nascedouro. Há quem desvalorize a vida terrena para viver pendurado em uma pretensa vida imaterial e etérea perda de tempo e de vida. A natureza, ao qual nós pertencemos como animais que somos, pode ser uma fonte de beleza e de prazer.Sofremos hoje as conseqüências de séculos de hostilidade do homem contra a natureza, da qual queria ser diferente e superior. Estamos como espécie, ameaçados de desaparecimento. Temos hoje, em sala de aula, a enorme responsabilidade de repensar nossa condição destrutiva e autodestrutiva com o cosmos.
Nosso ódio ao animal em nós, que baseou séculos de civilização e que embasou e legitimou a criação de saberes, técnicas, tecnologias visando nossa humanização ás custas do bicho que somos. Técnicas e tecnologias de disciplina, de controle, de produção de si, nos fez ver a natureza como inimiga combater inclusive a natureza em nós. Daí nossa hostilidade á vontade de potencia, como chamara Nietzsche. A civilização gerou infelicidade, ressentimento má consciência porque nos negou enquanto seres de desejo e de vontade.
Valorizem a dimensão crítica da razão, sua capacidade de instaurar a dúvida, de desconstruir mitos, lugares comuns, explicações do senso comum. Usem a aguda arma da ironia para que não adiram a primeira verdade que te é enunciada. Um Historiador, um professor de História é alguém que ensina, acima de tudo, a desconfiança em relação ás verdades cristalizada no tempo e sobre ele. A Historiografia é uma polemologia, como nos diz Michel Onfray, nada mais do que isso. E isso é muito. Ou seja, ela é um saber que visa a polêmica, a dissensão, ao contraditório, a dialética das idéias. Ela visa instaurar a dissonância no coro dos contentes. A História usa o passado para incidir criticamente sobre as certezas do presente, para abri-lo ás possibilidades de leitura e de interpretação. Essa é a sua dimensão política. Fazer ou ensinar História é tomar posição em uma polêmica, inclusive no interior da disciplina. Não é deter verdades definitivas, não é chegar a versão indiscutível do passado, mas é por sempre em discussão qualquer versão ou verdade construída para o que passou.É tomar posição em uma batalha de idéias e alimentar com elas a ação dos homens no presente. Na sala de aula de história, tal como propunha Michelet, você brinca de cruzar o rio da morte, você propõe uma lúdica que se constitui no gesto de brincar de ir ao passado para de lá olhar de como de fora o presente, dando a ele novas perspectivas.
A Historiografia não é o lugar da veiculação e reafirmação de mitos: sejam nacionais, regionais ou locais, políticos, ideológicos, religiosos, mas de sua problematização. A História não constrói monumentos e mausoléus: ela os põe abaixo. Ela não sacraliza: dessacraliza, torna profano, torna coisa desse mundo a todo e qualquer tema ou acontecimento. Nem mesmo deus e o seu culto deixam de ser reduzidos ao que são: invenções humanas no tempo.
Mas por valorizarem a razão, não esqueçam dos sentimentos e das sensações. Nós humanos somos seres e não apenas pensamos o que fazemos, nossas ações, os acontecimentos, mas sentimos o que nos acontece. Grande parte das ações humanas, matéria prima da História, são motivadas não apenas por decisões racionais, mas por sentimentos e emoções. Grande parte da história humana se passa não sob o tacão da consciência , mas flui a partir dos impulsos do inconsciente. Os sentimentos e as paixões têm história e fazem História, tanto quanto as idéias e projetos racionais. Não esqueçam que seus alunos e colegas são movidos não apenas por argumentos lógicos, embora muitos tentarão te convencer disso, mas também por desejos e sentimentos, muitos deles inconscientes e, alguns, inconfessáveis.
Lembrem-se da sabedoria de Hobbes, vivemos numa sociedade onde o homem é o lobo do próprio homem. Não sejam inocentes, o mundo humanos é feito de conflitos, de guerras, de contradições e de disputas. Os homens nunca foram anjos, nem mesmo anjos decaídos. No seu lugar de trabalho não imperará necessariamente a solidariedade e a paz. Os valores cristãos não são seguidos nem por aqueles que nas sacristias e púlpitos os professam, simplesmente por serem impossíveis para homens humanos. Somos seres da inveja e da vontade de poder. Sabedoria máxima é procurar se distanciar, por superioridade, da fúria cotidiana das vaidades. Dar a outra face ao seu colega, nunca! Ele te baterá novamente, mas virar o rosto, se afastar, deixá-lo falando sozinho com sua inveja e o seu ressentimento. Tenhas sempre mais do que fazer do que ficar perdendo tempo alimentando a má consciência do seu colega. Não adoeças travando batalhas, se colocando em situações conflitivas das quais nada de proveitoso para ti poderá advir. A polidez e a distância são armas que podes usar para evitar muitos dissabores. No popular, não dês murros em ponta de faca, você só se machucará. Procura estar com pessoas, cultivar as amizades, entrar nos lugares que te possam, efetivamente, trazer crescimento pessoal e prazer. Sabedoria antiga das mulheres: as vezes uma boa rabissaca nos livra de muito aborrecimento.
Faça da alegria a medida de todas as coisas. Se você chegou aqui e fazer esse curso te foi alegre, estás no caminho certo. Se entrar numa sala de aula te sentes feliz, estás na profissão correta. Se ao terminar de escrever um texto, a sensação é de gozo , um orgasmos intelectual, prometes como historiador. Se tens o maior tesão diante de um documento, se te dá um gostoso comichão a entrada no arquivo, serás feliz na profissão. Mas, se passaste pelo curso como obrigação, para satisfazer alguém e não a ti mesmo, se entrar em uma sala de aula é mortificante, é uma tortura, desejas que a aula logo acabe ou que nem exista, estás na profissão errada. Se pensas em fazer somente o tempo da aula passar, se não tens prazer no preparo da aula, se adotas como método de trabalho o faz de conta, a enrolação, vais fazer outra coisa,tenha coragem de romper com essa rotina e vais ser feliz exercendo outra profissão.
A vida é curta e só temos ela para desperdiçá-la exercendo uma atividade que nos entristece e amofina. Tenha coragem de começar de novo, se esse não for o teu caminho. Faça da alegria a prova dos nove, como dizia Caetano Veloso, fique com aquilo ou com aqueles que te fazem ser alegres.
E sorria, o riso é a maior arma com que a natureza nos dotou junto com a consciência. E, por sermos seres conscientes, por sermos os únicos seres que têm consciência de sua própria morte, o riso se torna fundamental. Chega de alimentar vales de lágrimas. As artes e literatura do Ocidente adoram fazer chorar, adoram um chororô. Chega da cultura da lágrima. Sejam professores e historiadores ridentes para não serem risíveis ou ridículos. Riam de todas as solenidades, as grandiosidades e as grandezas, pois sois historiadores e a História nos ensina, justamente, que não há solenidade que não guarde em si a baixaria, que não há potência ou grandeza que não esteja fadada á queda e ao declínio. A História nos ensina justamente a aceitar o caráter trágico da existência humana, seu caráter finito e temporal. Não há soberba ou soberania que o tempo não venha a corroer. Até mesmo as divindades, os deuses morrem com o tempo, pois nele foram criadas. Os heróis, embora eternos, estão mortos. Ria das imortalidades e das moralidades, elas são terrenas e, portanto, perecíveis.
Sejam professores e historiadores amigos do riso, da graça, da leveza, da dança, Sejam professores bailarinos ( e quem me conhece sabe que quase danço em sala de aula). Sejam historiadores de peso, mas leves no corpo e no espírito. Evitem as obesidades, as adiposidades na carne e na subjetividade. O que mais pode desejar um homem do que flutuar? Pegue leve sempre. As pessoas pesarosas e cheias de pesadume se arrastam pela vida ou arrastam a vida como um fardo. Não carregue fardos, jogue-os à beira da estrada. Nada que pese, que te amarre, que te empurre para baixo, que te paralise merece ser cultivado. Jogue fora o peso morto ou o morto de peso. As pessoas vivem buscando o céu e esquecem de levantar voo. Hoje esse dia , essa cerimônia seja encarada como o inicio do voo de cada um de vocês. Que o curso tenha dado a cada um asas para voar. Não direi que cada um solte as frangas, mas que alce voo. Para isso, tudo o que pesado, carregado deve ser deixado por terra. Que prefiras eriçar as penas á viver penando, que entre a penitência a penalidade e a penalização, prefiras apenas ser feliz. É o que desejo a todos e todas! Espero que essas minhas poucas palavras possam ter valido a pena! Melhor, espero que elas não tenham valido a pena, mas valido a alegria. Beijos a todos e todas.
Durval Muniz de Albuquerque júnior.
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